O que cabe na folha

Lei nº 101/2000, Lei de Responsabilidade Fiscal ou apenas LRF, como é conhecida no universo da gestão pública. Essa é a norma que tira o sono de muita gente desde o início deste século, quando criada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.  Uma lei surgida da necessidade de pôr ordem nas finanças públicas, moralizar a utilização do dinheiro do contribuinte, sob o manto da responsabilidade fiscal, como seu nome já entrega.

O assunto parece distante da realidade do cidadão, mas não é. Tanto assim, que no meio desta semana diversos veículos de comunicação do estado, como a Tribuna do Norte (leia aqui), repercutiram a notícia de que o Rio Grande do Norte tem a maior despesa percentual com pessoal entre todos os estados do Brasil, com 74% dos seus cerca de R$ 20 bilhões de orçamento aplicados no pagamento de funcionários, de acordo com informações da Secretaria do Tesouro Nacional (STN).

Acontece que, em quase meio século de vigência, a LRF foi e é continuamente negligenciada por uma parte dos gestores brasileiros no trato das despesas com seu quadro de servidores, vez que encorajados também em certa medida, por igual negligência fiscalizatória de alguns órgãos de controle que encontram dificuldades sistemáticas e estruturais para realizar o trabalho de forma preventiva ou ao menos de modo mais célere, mais aproximado dos acontecimentos, sobretudo no âmbito dos municípios, em suas prefeituras e câmaras de vereadores.

No entanto, se o aspecto fiscalizatório aos poderes executivo e legislativo municipais, especialmente, carece de maior rigidez, o mesmo não se pode dizer sobre o processo judicial que envolve o tema, haja vista a postura adotada pela justiça nos estado e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido de prestígio aos valores consagrados na LRF para a administração pública. Inclusive, recentemente o STF, no julgado de Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) proposta pelo partido NOVO, reafirmou sua jurisprudência no sentido de validar as regras de apuração dos limites de gastos com pessoal, reiterando o entendimento de que os gastos com Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) e com o pagamento de inativos e pensionistas fazem parte do cálculo a ser observado por órgãos públicos quanto aos seus funcionários.

Essa não foi a primeira vez o que o STF precisou tratar de questões dessa natureza. Frequentemente, o tribunal é demandado por estados e municípios desejosos de conseguir mais espaço ou margem em seus orçamentos. No entanto, como em outras ocasiões, a suprema corte tem rechaçado em suas decisões quaisquer possibilidades de ampliar exceções ou flexibilizar a matemática das despesas públicas já fragilizadas estruturalmente em todas as esferas de poder. Mas essa frustração aos interesses de gestores públicos não lhes têm reduzido o ímpeto pela gastança com folha de pessoal, que se não viabilizada pelo lado do aumento de receitas, logo o fazem por meio da chamada ‘contabilidade criativa’, uma saída para maquiar ou mascarar dados e assim ‘driblar’ a LRF.

Antes de abordarmos como a lei é ignorada, temos que trazer os parâmetros que balizam e permitem saber se um órgão público está cumprindo ou não as exigências legais. No caso do assunto deste artigo, a lei traz três níveis de gastos que devem ser respeitados em todas as prefeituras:

  • Limite de alerta: 48,6% (Art. 59, § 1º, II);
  • Limite prudencial: 51,3% (Art. 22, parágrafo único);
  • Limite máximo: 54% (Art. 20, III, b);

São esses números os norteadores dos gastos públicos sob administração de prefeitos de todo país, que funcionam como freios à gestão equilibrada dos recursos públicos, e para os quais, em tese, não se deve extrapolar. Acontece que, diferentemente de empresas privadas, em que a folha de pagamento consome, no máximo, ao redor de 25% do dinheiro disponível, nas prefeituras o comprometimento legal é superior ao dobro da iniciativa privada, e ainda assim, não raro, insuficiente para lastrear as despesas.

E como as folhas acabam sendo infladas em descumprimento da gestão fiscal responsável por prefeitos, por exemplo? Há muitas maneiras, mas destaco 3 problemas práticos decorrentes das exigências da LRF:

  • Terceirização (Art. 18, § 1º)
  • Imposto de renda (Art. 18, § 3º)
  • Aposentados (Art. 19, § 1º, VI)

Poucas prefeituras utilizam as despesas com terceirização de mão de obra no cálculo de seu Relatório de Gestão Fiscais (RGF) em que consta o percentual de Despesa Total com Pessoal (DTP) do órgão, o que ocasiona,  apenas com esse item, redução real de até 15% no custo com folha; Também não muitas consideram os valores arrecadados com imposto de renda dos servidores no cálculo do RGF, representando até 5% do valor total com pessoal; não menos importante, a despesa com inativos, aposentados e pensionistas costuma ser ignorada por boa parte dos executivos municipais, e ela responde por cerca de 10% do custeio de servidores.

Tem-se, pois que, somados apenas as cifras despendidas para suportar terceirização de mão de obra, inativos e imposto de renda, chega-se à ocorrência de até 30% de impacto sobre gasto total real com folha, subtraídos do RGF, o que aponta para um cenário de finanças públicos bem diferente daquele apresentado em relatórios contábeis oficiais. Significa dizer que há diversos órgãos públicos Brasil a fora gastando muito mais além do que a LRF permite com folha de pagamento. É quando os portais da transparência quase nada dizem da realidade das prefeituras, pois os documentos oficiais não carregam em si os dados que deveriam.

Como consequência desses artifícios, o subdimensionamento da DTP gera falsa noção de margem de ampliação de despesas, além de impactar diretamente as previdências municipais e de criar cenário irreal de equilíbrio nas contas da administração pública. Tudo isso sem ocasionar quaisquer tipo de penalização aos dilapidadores do erário.
E como dizem que papel aceita tudo, com a folha (de pessoal) não é diferente. A ‘contabilidade criativa’ de uma parte das prefeituras brasileiras é prova disso. Exclui o que não deveria, considera o que não basta. Faz o que é conveniente. Assim as coisas parecem ajustadas. E aí reside o caminho para o qual os órgãos de controle (MPE e TCE) deveriam atentar-se: o que cabe na folha.
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