Há 20 anos, durante aula no cursinho pré-vestibular em Natal, discutíamos sobre um artigo de Cláudio de Moura Castro, especialista em Educação, para Veja. Ali, Castro tratava do modelo de ingresso no ensino superior, que nos moldes brasileiros existia nos poucos países do mundo em que o acesso não era universal. E o articulista de Veja ponderava em seu texto sobre os riscos de, sob esse modelo, estarmos produzindo uma geração de profissionais ‘robôs’, não preparada para o mercado de trabalho, vez que avaliada apenas pelo conhecimento enciclopédico em sua iniciação universitária. Castro advogava que o ENEM, criado em 1998 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, tinha potencial para corrigir o que considerava um erro estratégico de nação. Em certa medida, o tempo encarregou-se de dar razão ao colunista, e hoje o ENEM é a plataforma oficial de ingressos em universidades públicas (SISU) e privadas (Prouni), em substituição aos vestibulares tradicionais de outrora.
Você deve estar pensando: qual a relação disso com o tema deste artigo? É simples: a premissa da opinião de Cláudio de Moura Castro sobre seleções e a utilidade do ENEM. É isto que nos transporta do início dos anos 2000 aos dias atuais para conversarmos sobre concursos públicos, tema recentemente destacado em função do recorde de inscrições no Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) promovido pelo governo federal e, curiosamente, apelidado de ‘ENEM dos concursos’, como vê-se na matéria do Correio Braziliense, a seguir:
Para quem não está habituado com o assunto, o CNPU é uma iniciativa pioneira do governo Lula, que permite aos cidadãos concorrerem a milhares de vagas na administração pública federal pagando por apenas um concurso, mais ou menos como ocorre com os estudantes que fazem o ENEM – daí o apelido. E de acordo com os dados divulgados pelo Ministério da Gestão e da Inovação (MGI), responsável pela organização do certame, um total de 2,1 milhões de brasileiros inscreveram-se nesta primeira edição para a disputa de apenas 6.640 vagas distribuídas em 21 órgãos federais – uma concorrência equivalente a 316 candidatos por vaga.
Embora o concurso ainda não tenha acontecido para avaliar o êxito de sua aplicação, mas é certo que essa ação do governo federal deve ser celebrada, vez que sinaliza e representa um passo dado na direção certa, de modificar os atuais mecanismos de ingresso no serviço público, buscando alinhar o Brasil às boas práticas internacionais que vão além das provas, a exemplo do que já ocorre em países como Chile, Portugal e Inglaterra, em que são realizadas avaliações técnicas, entrevistas, testes psicológicos, entre outras dinâmicas capazes de auferir com mais precisão as aptidões dos candidatos a servidores públicos.
A propósito, o quadro atual de acesso ao serviço público brasileiro aponta para existência de equívocos que iniciam no foco dado pelas seleções, como explica Fernando Coelho, professor de Gestão Pública da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP:
“No Brasil, 75% dos concursos aplicados são de fase única, que conseguem aferir conhecimentos acadêmicos, mas não têm fases para aferir habilidades e competências.”
A concentração dos certames em provas simples é sintomático de que não temos uma triagem adequada na busca pela captação, a rigor, dos profissionais mais habilitados a ocuparem os postos existentes nos órgãos das variadas esferas administrativas de poder, na medida em que as avaliações simplificadas por vezes mostram-se insuficientes ou incapazes de capturar com eficiência aspectos relevantes da vida daqueles que participam das seleções públicas.
Para fazer frente aos problemas já conhecidos, o Congresso Nacional debruça-se sobre algumas alternativas, entre as quais merece destaque a trazida pelo o PL nº 2.258/2022, já aprovado na Câmara e em tramitação no Senado. O projeto propõe sistematizar e regulamentar as regras gerais de concursos públicos, sob as bases de três premissas: conhecimentos (provas escritas, objetivas ou dissertativas, e provas orais, que cubram conteúdos gerais ou específicos), habilidades (testes físicos compatíveis com as atividades, elaboração de documentos e simulação de tarefas específicas da função) e competências (entrevista, avaliação psicológica, exame de higidez mental ou teste psicotécnico) necessários para assumir um cargo na administração pública – esse projeto traz significativos avanços justamente porque propõe-se avaliativo não apenas do conhecimento enciclopédico, mas também das valências personativas e relacionais dos candidatos.
Além do PL nº 2.258/2022 sobre regramento dos concursos, há também uma discussão mais ampla em Brasília, sobre reforma administrativa, materializada pela chamada PEC 32 (Proposta de Emenda Constitucional apresentada em 2020), e que se propõe a aperfeiçoar a relação dos servidores com a administração pública. Não entro no mérito da proposta para lançar juízo de valor a respeito – mesmo porque o tema deverá ser retomado em breve, já que de acordo com a ministra da Gestão e da Inovação, Esther Dewck, o governo Lula encaminhará ao Congresso nos próximos meses projetos focados nessa temática -, limitando-me a extrair da PEC 32 o que entendo como principal utilidade dela: reavivar a discussão acerca das mudanças necessárias no serviço público. E quem concorda com isso é o Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que já declarou seguidas vezes ter essa pauta como uma das prioridades para o ano de 2024. É aguardar e ver o que será entregue à sociedade pela mundo político.
Encerro a conversa lembrando a gênese da questão (a qualidade do serviço que deve ser prestado à sociedade pela administração pública, balizada na meritocracia como elemento norteador das seleções) para trazer o que reputo merecer centralidade no debate, algumas inovações possíveis e necessárias:
- Realização de concursos total ou parcial de forma on-line para universalizar o acesso e permitir redução de custos;
- Organização das seleções por universidades públicas para reduzir custos, elevar o nível das etapas e conferir maior lisura aos processos;
- Equilíbrio na distribuição dos pesos das provas (50% atribuídos ao conhecimento enciclopédico) e dos títulos (50% atribuídos à formação acadêmica e à experiência profissional) para fomentar a meritocracia e a elevação da qualidade dos serviços;
- Padronização de áreas temáticas básicas de provas (conhecimento específico, legislação e informática) comuns a todos os concursos para uniformizar o conhecimento adequado ao exercício de cargo público;
- Não cobrança de taxa de inscrição para garantir a igualdade de acesso à participação a todos os brasileiros interessados;
E você, já parou para pensar sobre como concursos públicos podem impactar direta ou indiretamente a sua vida?